Um dia comum…
O cheiro de comida sendo preparada
invadia os corredores e se misturava com o calor do final do verão e com a fome,
presente no momento que precede o horário do jantar. As pessoas vão chegando aos
poucos, uns vem direto do trabalho, outros (conseguem passar em casa) e, se
fizermos uma leitura atenta dos olhares, os reflexos do dia podem ser
percebidos em cada jovem, adulto ou idoso que esperam o início da aula. Neste
ambiente encontramos pessoas muito diferentes, porém que compartilham alguma
história de ausência. Cada um, a sua maneira, pensa em possibilidades de
completar a etapa escolar, uns por iniciativas próprias, outros pela
oportunidade de permanecer em um espaço de socialização, ou até mesmo por
indicação judicial, juntos, reúnem sonhos, expectativas e motivações das mais
variadas.
No horário de iniciar a aula peguei
o material, avisei as estudantes que estavam reunidas e caminhei em direção a
escada que daria para o andar superior do prédio, lá em cima o calor e o cheiro
do jantar pareciam ainda mais intensos, entravam pelas frestas das portas e se
acumulavam dentro das salas como um bafo úmido e quente, tornando quase difícil
permanecer no ambiente.
As senhoras-meninas foram chegando e
se acomodando, prontas para mais uma noite de atividades com possibilidades de
conversas, jogos, leitura e interpretação em meio aos computadores da sala
informatizada, tudo preparado previamente com atividades que além do
aprendizado pudesse ser prazeirosa para todas nós. As estudantes falantes e
risonhas se sentaram a espera, conversando e contando fatos do dia. Uma delas,
fora da sala, me chamou a atenção, olhei pela porta e a avistei caminhando sem
pressa como se estivesse carregando fardos de indignação, voltei e sentei com o
grupo. Dei boa noite com o livro Quarto de
despejo, entre as mãos, e me aprontei para ler e discutir o
capítulo, como primeira atividade da noite. A senhora-menina, sem pressa,
entrou pela porta e se colocou de pé, bem a minha frente, uma mulher negra e
forte com o porte de quem esta acostumada à batalhas da vida, cabelos trançados
com fios de linha e carregando uma bolsa, olhava como se não acreditasse na
cena: uma sala repleta de computadores e ela no centro. Me senti congelada pelo
seu olhar e por sua indignação que foram traduzidos em uma fala agressiva que
soou como um tapa na minha alma de professora. Sem rodeios, me contou com olhar
exausto o quanto acordara cedo e o quanto trabalhara até tarde, que não é fácil
trabalhar em um centro de triagem de materiais reciclados e que estava farta de
passar vergonha por não saber ler e escrever, e continuou sua fala:
- Não estou aqui pra brincadeira, me
respeite! Não tenho mais tempo e não sou obrigada a passar mais vergonha na
vida.
- Acalme-se, eu te ajudo, não
precisa ter medo.
- Eu quero e preciso aprender ler e
a escrever, me passe tarefas que estudo em casa, não ficarei aqui perto desses
computadores, não sei nem ligar um botão.
Ainda meio tonta, não consegui
responder mais nada, ela me deu as costas e disse que só não iria embora porque seu ônibus passaria
no final da aula, que preferia esperar o tempo sentada no pátio do que ficar
naquela sala com os computadores. Respirei fundo sem saber muito o que fazer,
desci as escadas tão anestesiada que nem percebia mais o calor e o cheiro de
comida, andava bem devagar para ter tempo de me recuperar e tentar pensar em
outra alternativa de aula para aquele momento, mesmo me sentindo sem chão, com
um misto de raiva e indignação tinha que mudar a atividade e contemplar as
expectativas da estudante insatisfeita. Sei que esse sentimento me veio mais
por orgulho do que por entender o tamanho e o contexto da insatisfação
representada no empasse.
Voltei, passei por ela sem olhar,
fui até a sala de computadores e convidei todas as outras estudantes para outra
sala de aula, passei um pequeno trecho do livro de literatura no quadro branco
e deixei a porta aberta para que a estudante insatisfeita pudesse entrar, caso
e se sentisse a vontade.
Simone Ribeiro,
Disciplina condensada (30 horas-aula)
Estudos decoloniais, epistemologias do Sul e temáticas socioambientais da
Educação Científica e Tecnológica Profª Tatiana Galieta e Prof. Irlan Von
Linsingen Período: 29 e 31 de maio e 3 e 5 de junho de 2019
Como
discussão da disciplina condensada resolvi apresentar este relato, com o
exercício de trazê-lo em formato de escrevivência. A princípio a escrevivência é meu principal objeto de estudo. Com
imersão a esse objeto de estudo, devo deixar bem explicado que se trata de uma
ferramenta política utilizada por mulheres negras para a expressão e representatividade
na escrita literária. Um dos ícones da escrevivência é a autora Conceição Evaristo e outro é a Carolina Maria de Jesus, escritora do livro citado no texto: Quarto de
despejo - Diário de uma favelada, publicado pela primeira vez em 1960 pela
editora Francisco Alves.
Essa aqui é a minha querida e
inspiradora Conceição Evaristo.
Essa é a Carolina Maria de Jesus
outra autora inspiradora.
Neste
momento fizemos uma imersão em pautas defendidas pelos estudos do grupo “Modernidade/Colonialidade”(MC)[1].
Linha teórica que aprofunda e discute aspectos curriculares e suas relações
com os efeitos das desigualdades, no intuito de superá-las. Dentre outros
termos, o grupo define a decolonialidade com referência às possibilidades de
pensamento a partir dos subalternizados pela modernidade capitalista.
Em
meio a questionamentos provindos das aulas e em reflexões feitas nos momentos
informais com os companheiros de disciplina foi possível identificar ausências nos
textos com abordagens decoloniais, quando se trata de corpo (como bem lembrado
e exposto pelo querido Yonier Orozco, em outro post). A formatação teórica, mesmo
no grupo Modernidade/Colonialidade”(MC),
pode ser entendida como falta de espaço para
os corpos subalternizados nos textos “decoloniais”. Talvez, aprofundar o olhar
para a decolonialidade não apenas como um movimento acadêmico e teórico e sim
um exercício de considerar verdadeiramente as sujeitas e aprender com elas a
partir de toda violência e subalternização que sofrem. Parafraseando Catherine
Walsh (2005), aprender a reaprender desde
os lugares. Neste sentido é preciso estar atento aos sinais e vivências de corpos
carregados de raça e feminilidades, que sofrem na carne as marcas do
patriarcado e das formas de colonialidade como aponta Quijano
(1997).
Essa aqui é Catherine Whalsh
Anibal Quijano – Sociologo Peruano
que viveu de 1928 a 2018.
Voltando
ao texto inicial (minha escrevivência), só depois de um tempo pude entender que
a mulher que me desafiava trazia consigo uma bagagem de exclusão, próprias de
quem nunca esteve frente a um computador, a não ser que fosse para limpá-lo.
Aquelas senhoras-estudantes-meninas tem motivos diversos para estarem ali. Depois
de tantas marcas, ainda, com o a intensão de aprender ler e escrever. Entendi
com esse episódio que é preciso aproximação e sensibilidade para nesse ambiente
de educação de jovens, adultos e idosos não reproduzir os mecanismos trazidos
pela colonialidade do poder. Percebi que minha habilidade de leitura e escrita soava como a detenção de poder com dimensão
tanto material como simbólica para aquela senhora-aprendiz. O exercício de pensar
sobre a narrativa da estudante me fez perceber que, como professora, preciso
olhar verdadeiramente para as estudantes e estar aberta a leitura de narrativas
e gritos de seus corpos.
Considerar
narrativas construídas desde os corpos subalternizados apresentam a possibilidade de olhar para
saberes que se constroem a partir de dimensões subjetivas das maneiras de existir. Assim, a representação
do corpo funciona como ato sintomático de resistência e arquivo de impressões
que a vida confere (Oliveira, 2009). O texto denso e verdadeiro escrito
pela autora Marlene Awar, nos mostra bem essa dimensão.
Agradeço imensamente a esse momento de troca com os companheiros da disciplina e aos professores
Irlan e Tatiana por proporcionar as reflexões nesta disciplina e concordarem
com o exercício de subverter as práticas acadêmicas iniciando pela maneira de
avaliação.
[1]
São os chamados
intelectuais decoloniais, a saber: o filósofo argentino Enrique Dussel, o
sociólogo peruano Aníbal Quijano, o semiólogo e teórico cultural argentino,
norte-americano Walter Mignolo, o sociólogo porto- riquenho Ramón Grosfoguel, a
linguista norte-americana radicada no Equador Catherine Walsh, o filósofo
porto-riquenho Nelson Maldonado-Torres, o antropólogo colombiano Arturo
Escobar, dentre outros.
Estou emocionada com seu relato. Uma boniteza.
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