Relato/Considerações sobre a minha participação na Disciplina.... (Por Silvana Leonora Lehmkuhl Teres)


A participação na disciplina “Estudos Decoloniais, Epistemologias do Sul e Temáticas Socioambientais da ECT” foi uma experiência que me oportunizou as primeiras reflexões sobre a diferença entre os conceitos de colonialismo e colonialidade; e também a respeito dos estudos decoloniais, pós-coloniais e da interculturalidade crítica. Sobre a distinção entre colonialismo e colonialidade, Nelson Maldonado-Torres (2007), faz a seguinte argumentação:
O colonialismo denota uma relação política e econômica, na qual a soberania de um povo está no poder de outro povo ou nação, o que constitui a referida nação em um império. Diferente desta ideia, a colonialidade se refere a um padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno, mas em vez de estar limitado a uma relação formal de poder entre dois povos ou nações, se relaciona à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado capitalista mundial e da idéia de raça. Assim, apesar do colonialismo preceder a colonialidade, a colonialidade sobrevive ao colonialismo. Ela se mantém viva em textos didáticos, nos critérios para o bom trabalho acadêmico, na cultura, no sentido comum, na auto-imagem dos povos, nas aspirações dos sujeitos e em muitos outros aspectos de nossa experiência moderna. Neste sentido, respiramos a colonialidade na modernidade cotidianamente. (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131).
São definições que só após os estudos realizados no âmbito da referida disciplina passaram a “habitar” os meus pensamentos mesmo atuando como professora a quase vinte anos na Educação Básica. E ainda mais, essas reflexões  “afetaram” a minha visão a respeito dos estudos etnográficos, em especial, os relativos à etnomatemática. A partir das leituras e das discussões realizadas comecei a ponderar mais, a refletir e tomar decisões mais conscientes, mais críticas na esfera pessoal, e, no âmbito profissional,  como professora de Matemática ou formadora de professores que ensinam MTM na Educação Básica.  E essa conscientização se materializa cotidianamente na tomada de decisões, no planejamento das aulas e nas argumentações pró ou contra sobre as ações coletivas da unidade escolar onde atuo. Quantas vezes, participei de campanhas promovidas no espaço escolar motivada pela convicção de que estava contribuindo para “amenizar” os impactos causados pela lógica da ideologia  dominante, diminuir o impacto ambiental ou aumentar a justiça social. Hoje compreendo que a maioria dessas  ações estavam contribuindo para reforçar o “marketing verde” (confesso, até com certo constrangimento que nunca tinha ouvido essa expressão) ou outras formas que a sociedade capitalista usa para continuar alimentando o projeto neoliberal e colonialidade presente no Brasil e nos demais países que se identificam com as denominadas “epistemologias do sul”, que possuem seus “saberes, culturas, modos de ser e de fazer”, a margem, das epistemologias dos países “desenvolvidos” e que continuam a explorar nosso capital humano, ditar nossas necessidades, consumo, padrões de moda, ideologia, política, currículos educacionais ...
            Compreendo que a escola se constitui como um lócus fundamental para a construção e socialização de conhecimento sobre a igualdade entre os grupos humanos, a valorização das diferentes culturas, e o respeito à diversidade presente na sociedade. Entretanto, as relações nesse ambiente estão impregnadas de aspectos das relações sociais mais amplas, ou seja, professores, estudantes, famílias e profissionais que interagem no espaço escolar são reflexos das relações sociais “contaminadas” por discursos racistas, sexismos, preconceitos e discriminações. E a experiência pela qual vivenciei na disciplina, apurou meus sentidos para compreender nas relações que se estabelecem entre seus interlocutores, inclusive eu, a reconhecer o que é dito e o que não é dito, quem são os sujeitos que falam e os que não falam, quem escuta ou deixa de escutar... Enfim, como as situações são vividas e percebidas para assim, com respeito e alteridade fazer inferências,  mediar, argumentar, contribuir com reflexões mais amplas sobre as ações ou situações que emergem nesse contexto, o que de partida, elimina qualquer neutralidade na minha prática pedagógica.
            Nesse sentido, entendo que os estudos decoloniais contribuem para ampliar a nossa percepção sobre as ideologias do saber e do ser que perpassam as relações entre professores, estudantes e famílias no contexto educativo. Como profissionais da educação, independente do campo de conhecimento, ou área de formação, é  nosso papel estarmos “atentos” para não reproduzir ou permitir a manifestação de discursos ou práticas racistas e de intolerância à diversidade cultural, religiosa, política, de gênero, econômica..., no espaço escolar.
            Em relação aos conteúdos específicos da disciplina de Matemática e à minha atuação como professora e formadora dessa disciplina, trago a perspectiva da Educação Matemática Crítica, defendida pelo dinamarquês Ole Skovsmose (2006, 2008, 2010), principal referencial teórico que fundamentou a minha dissertação de mestrado, intitulada “EM DIREÇÃO À EDUCAÇÃO MATEMÁTICA CRÍTICA: A análise de uma experiência de Modelagem pautada na Investigação e no uso da Tecnologia”, defendida em 2014.
Cabe salientar que Skovsmose fundamentou a sua abordagem da “Matemática Crítica” na Pedagogia do Oprimido, escrita pelo brasileiro Paulo Freire, e que defende que a compreensão da realidade interfere na subjetividade das pessoas. Deste modo, uma prática pedagógica que problematiza questões sociais atreladas ao quotidiano dos estudantes propicia o desvelamento das causas e das consequências dos acontecimentos, empoderando-os[1] no sentido de conceber singularidades e possibilidades de mudança no tempo e espaço histórico em que vivem. A esse respeito Freire afirma que:
O estabelecimento de uma relação crítica com a realidade é para o ser humano um desafio que lhe permite ultrapassar uma situação de objeto para sujeito, sendo importante ressaltar que as respostas que o ser humano dá a estes desafios não mudam apenas a realidade, mas provocam mudanças em si próprio, cada vez um pouco mais e sempre de um modo diferente. (FREIRE, 1980, p. 23).


Skovsmose (2006, 2008, 2010) amplia a discussão ao propor a Educação Matemática, pautada na perspectiva crítica. A Educação Matemática Crítica  defendida por Skovsmose tem como pressuposto discutir a relação dos conteúdos matemáticos com as questões relativas ao desenvolvimento científico e à tecnologia. Para o autor, a Educação Matemática Crítica tem um papel fundamental na construção da cidadania, na medida em que a sociedade, cada vez mais, se serve dos conhecimentos científicos e tecnológicos. O processo de comunicação está permeado de representações gráficas, desenhos, construções, códigos, senhas e signos da linguagem matemática que precisam ser incorporados pelas pessoas, isto justifica a necessidade da matemática estar ao alcance de todos garantindo a democratização do seu ensino. Nesse sentido, a abordagem da Educação Matemática Crítica não pode ser concebida dissociada da tecnologia, ao passo que constitui-se num instrumento a favor da construção de conhecimentos, valores e atitudes, frente às questões sociais, científicas, econômicas e  políticas da sociedade matematizada  em que vivemos. (TERES, 2014)
Para Skovsmose  as TIC’s  oportunizam diferentes modos de representação e apropriação dos conceitos matemáticos e permitem aos estudantes a ampliação do acesso às informações e o uso de inúmeros recursos audiovisuais que possibilitam a comunicação e a socialização dos conhecimentos produzidos em sala de aula. A utilização desses recursos, porém, prevê a necessidade de professores que saibam utilizá-los de forma crítica e que estejam abertos ao uso de metodologias que considerem a amplitude das informações que podem imergir no contexto da sala de aula.
Skovsmose  propõe que a sala de aula seja concebida de um “cenário para investigação”, que ele define como uma propriedade relacional que envolve professor e estudantes, mas os estudantes é que são os principais responsáveis pelo processo investigativo. É um ambiente que oportuniza o trabalho de investigação, convidando os estudantes a formularem questões e a procurarem explicações. Para tanto, é preciso que a sala de aula seja concebida como um espaço constituído por relações democráticas e que propiciem a democratização dos diferentes saberes que emergem das histórias singulares dos atores ali presentes.
Para esse autor, a educação tradicional enquadra-se no que ele denomina “paradigma do exercício”, prática que enfatiza os procedimentos e os modos de fazer, realizados sem reflexão, e parte da premissa de que em cada exercício existe uma e somente uma resposta correta. Contrapondo-se a esse paradigma, o autor propõe a abordagem de investigação, embasada no “paradigma da incerteza” que dá ênfase no processo de construção das hipóteses, e considera variadas possibilidades de soluções. (TERES,2014)
            A abordagem da Educação Matemática Crítica, embora pareça inovadora, não difere das orientações dispostas nos Parâmetros Curriculares Nacionais, aos professores, quando propõem projetos de aprendizagem que contemplem a problematização, a experimentação e a sistematização dos conhecimentos, e que contribuem para a desestabilização de verdades, ao invés da mera memorização de informações. (BRASIL 2001)
Assim, contrapondo-se à prática, ainda usual na sala de aula, de entregar aos estudantes, exercícios com enunciados formulados, preferencialmente, numa sequência, do mais fácil ao mais difícil. Uma metodologia pautada na perspectiva da Educação Matemática permite uma situação de investigação, onde é permitido ao estudante, formular suas próprias questões e desenvolver a sua criatividade ao buscar possibilidades de respostas. (SKOVSMOSE, 2006,2008,20010)
 Os professores que ensinam matemática precisam compreender que a matemática nunca foi e não é neutra, e trabalhar a matemática escolar como um “processo” e não apenas um “fim”, para obter-se um determinado resultado. Essa forma de conceber a Matemática contribui para o entendimento de que este campo de conhecimento não se restringe ao seu próprio contexto, mas que é construída nas relações do dia a dia dos estudantes com o mundo. (TERES, 2014)
Assim, percebi que mesmo desconhecendo a abordagem dos estudos decoloniais, já possuo uma prática pedagógica pautada em princípios, que de um certo modo, estão na perspectiva da decolonialidade crítica.
Finalizo essas considerações, agradecendo aos professores Thatiana e Irlan pela oportunidade oferecida, pelo acesso às informações elementares desse campo de conhecimento, e ,  ao grupo pelas discussões, reflexões e pela companhia de pessoas tão “leves”, “simples”, “humanas”, “informais”... que tornaram o tempo e espaço dessa disciplina ímpar e inesquecível. Quero mais...
P.S. “A gente vai continuar se falando”. Bj. Sil

Referenciais

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
______. Pedagogia da autonomia. 42. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
MALDONADO-TORRES, Nelson. “Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto”. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (Org.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo de Hombre Editores, 2007, p. 127-167

SKOVSMOSE, O. Cenários para investigação. Boletim de Educação Matemática, Rio Claro, n. 14, p. 66-91, 2000.
______.Educação matemática critica: incerteza, matemática, responsabilidade.
São Paulo: Cortez, 2006.
______.Desafios da reflexão em educação matemática crítica. Campinas/SP:
Papirus, 2008.


[1] Termo cunhado por Paulo Freire no livro Pedagogia do Oprimido, publicado pela 1ª vez em 1969 nos EUA.

Comentários

  1. Impressionante como a disciplina contribuiu para que pensassemos nossas práticas docentes e nossos olhares de pesquisadores. Mas além disso, como as conversas que tivemos a partir das leituras que fizemos foram transformadoras de nosso "eu", de uma subjetividade quase sempre apagada na academia. Adorei ler seu texto escrito em primeira pessoa, tão pessoal e sincero, Silvana. Seguimos juntas.

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