Qual a cor do imaginário ‘cientificamente comprovado’? Posição que cala, lugar de fala






Posição que (nos) cala: o imaginário das Ciências 



Se você chegou até aqui, Honradx Leitorx1, não importa se por um tag de seu interesse particular de leitura ou
pesquisa, não importa se à revelia… O fato - e que poderá tornar-se um acontecimento - é que estamos aqui neste
ensaio, e lhe proponho que reflitamos sobre algumas situações... 

NOTA (1): Usarei, por vezes, o ‘x’ para incluir pluriversidades sexuais, anti-sexistas. Sem quaisquer privilégios ou hierarquias. Uma vez que: “Na Pluriversidade, estudamos o mundo, a cultura. Ela não se fecha, não se ritualiza. Ela é ‘Democracia Cognitiva’ “ - cf. o maranhense e mestre em literatura, Ary Carlos Moura Cardoso, no texto de sua autoria: Da Pluriversidade… “, no site WebArtigos [on-line], publicado em 27 maio 2010)
                                            
Começo, antes de tudo, por situá-lxs e trazê-lxs à reflexão de algo que me tem inquietado.
E, a partir do título deste post, vocês já veem minha intencionalidade de polemizar sobre um jargão discursivo que
circula por variados espaços mercadológicos (produtos farmacêuticos; eletroeletrônicos; inovações tecnológicas de
modo geral), institucionais (sistemas controle de qualidade; órgãos de vigilância; serviços públicos), escolares /
universitários (conteúdos; práticas de ensino; sistemas de avaliação; metodologias), dentre outros, lacrando com:
cientificamente comprovado. Pela via desse imaginário. E, isso está posto no discurso, se nos voltamos à produção
de sentidos que assegura os saberes escolares; mais do que todos, ‘cientificamente comprovado’.

Quando me refiro à palavra ‘discurso’, situo este na acepção da professora-pesquisadora brasileira, a linguista
Eni Puccinelli Orlandi, ao nos esclarecer em seu livro Análise de discurso: princípios e procedimentos, em sua
12ª edição lançada em 2015, pela Editora Pontes, que: 

“O discurso não corresponde à noção de fala pois não se trata de opô-lo à língua como sendo um sistema, onde tudo
se mantém, com sua natureza social e suas constantes, sendo o discurso, como a fala, apenas uma sua ocorrência casual,
individual, realização do sistema, fato histórico, a-sistemático, com suas variáveis etc. O discurso tem sua regularidade,
tem seu funcionamento que é possível apreender se não opomos o social e o histórico, o sistema e a realização, o subjetivo
ao objetivo, o processo ao produto.”  (fragmento da pág. 22 desse livro)

E, importa-me, aliando discursos científicos ao social e ao fatídicos acontecimentos históricos no ambiente da América Latina,
pensar sobre tal posicionamento escolar mais especificamente do lado daqui (do nosso: afrolatinoamericanxs),
sociedades do Sul global, periféricas, em seu tempo e em seu espaço que contêm e distinguem o referido jargão.
Principalmente, se nos percebermos como referentes sócio-históricos para a cor do mundo que nos cerca, com o
advento da modernidade [conforme tese do sociólogo peruano Aníbal Quijano (1928-2018)]. Pessoas de cor,
nós, cientificamente comprovadas e cientificamente enquadradas pela posição em subalternidade de
conhecimentos (sensos, saberes e significados: cosmovisões), de produzi-los, a partir de nós mesmxs, pessoas
latino-americanas. Mas, de outra cor (intituladxs como produtorxs de etnoconhecimentos, não-cientificamente comprovados)), que
não a dos que historicamente colonizaram as formas legitimadas de conteúdos ocidentais, e com os quais fomos
escolarizadxs e pelos quais fizeram-nos compreender sua organização escolar, seus currículos, seus
critérios de avaliar, sua linguagem, sua língua, concordante com uma produção de conhecimentos
científicos comprovadamente válidos. Até... salvacionistas. 



Imagem 1Desenho de autoria do cartunista político brasileiro Carlos Latuff, produzido em 2014, representando o 25 de Julho: Dia Internacional da Mulher AfroLatina e AfroCaribenha 2

NOTA (2.0): Conforme publicação da Revista Fórum [on-line]: “No Brasil, a Lei nº 12.987/2014 foi sancionado pela presidenta Dilma Rousseff, como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra” (extraída da coluna intitulada: 25 de julho: Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americano e Caribenha, publicada em 25 jul. 2018; grifos meus).

NOTA (2.1): No portal LaRed21, encontramos que: “(...) las descendientes afro en América, conmemoran el Primer Encuentro de Mujeres Afrodescendientes, celebrado en República Dominicana en 1992, y que abrió paso al compromiso de reafirmar la lucha por los derechos de las mujeres y las defensoras de los derechos humanos de los pueblos y las sociedades latinoamericanas y del Caribe.” (extraída da matéria: Día Internacional de la Mujer Afrolatinoamericana, Afrocaribeña y de la Diáspora, cumple 23 años, publicada em 25 jul. 2015).

NOTA (2.2): O I Encuentro de la Red de Mujeres Afrolatinoamericanas y Afrocaribeñas, ocorrido em Santo Domingo, República Dominicana, entre 19-25 de julio de 1992, estabeleceu que: “Esta Red estará constituida por un comité nacional representativo de cada país, y por seis comités subregionales: Caribe hispano, Caribe angloparlante, Caribe francoparlante, Centroamérica, Sudamérica, y Afro-latinas/caribeñas residentes en otros países del mundo. Los objetivos son: - Trabajar conjuntamente para mejorar las condiciones de vida de las mujeres negras; - Combatir las ideas negativas (prejuicios y estereotipos) que se vehiculan sobre la mujer negra; - Denunciar todo tipo de discriminación contra las mujeres negras; - Promover la participación de las mujeres negras en los diferentes espacios políticos y decisionales;- Trabajar la problemática del racismo desde una perspectiva de género; - Promover la comunicación, intercambio de experiencias, solidaridad y destreza con otras organizaciones; - Luchar contra todo tipo de discriminación; - Apoyar la lucha de las mujeres haitianas por mejores condiciones sociales y por la solución de su crisis política; - Apoyar la lucha de la mujer dominicana de ascendencia haitiana por mejores condiciones sociales, legales y económicas. Las estrategias propuestas: (...) - Promover una ley de antidiscriminación en todos los países del continente; (...) - Promover investigaciones sobre la problemática de las mujeres negras y sobre la cultura afro-latina y afro-caribeña en todos sus aspectos; - Realizar marchas, conferencias, peticiones, cabildos, coloquios y conmemoraciones; - Conmemorar el 25 de julio de cada año como el día internacional de las mujeres afro-latino/caribeñas; - Promover la inserción de la problemática de las mujeres negras en el movimiento feminista y de mujeres, y en todas las organizaciones afines.”Las Resoluciones: - Constituir la Red de Mujeres Afrocaribeñas y Afrolatinoamericanas con sedeen República Dominicana; - Luchar contra la discriminación racial, de clase, de género y de opciónsexual; - Condenar la celebración del V Centenario por considerarlo el crimen más horrendo de la humanidad y por su contenido ideológico y racista; - Demandar que las regiones desistan de la celebración del V Centenario; - Declarar el 12 de octubre como el ‘día de la dignidad continental’ (...)” (publicado em Minga Informativa de Movimientos Sociales, em 4 set. 2000; grifos meus)

Podemos ver, a partir da Nota 2.2, que a Red de Mujeres Afrolatinoamericanas y Afrocaribeñas  

propõe objetivos eminentemente pedagógicos para comunicarmos as Ciências Naturais, se tomados na perspectiva
de uma assunção de lugar e de posição dx professorxs em sala de aula. Afirmações de gênero, de bandeiras
ideológicas, de crenças sociais, de atitudes, de gestos, por falas que deveriam/deverão estar naturalizadas no planejamento de
ensino, contidas na agenda da Educação Básica (sendo conteúdos de Ciências),
como garantias de direito de aprender de meninos e de meninas sobre sua realidade étnico-racial e
sociocultural. Bem como as aprendizagens de Ciências Naturais poderão levar a cabo um projeto social e
tecnocientífico mais amplo, formativo de cidadãos e cidadãs. Mas, é importante observar que nem todo
conteúdo historicamente estabilizado nos currículos escolares são bem-vindos, se lançarmos luz
sobre os povos ex-coloniais. Como, pelo conteúdo expressamente rechaçado nas estratégias da
proposta: a celebração do V Centenário da relativa ‘descoberta’ das Américas, que silencia e apaga a
presença de nossos povos originários, em detrimento de enaltecer a presença de espoliadorxs
dessas terras, por um comportamento psicossocial refratário, da ‘comprovada cientificamenteSíndrome de Estocolmo.

Por essa via descritivo-interpretativa de formas-conteúdos que denunciam e que anunciam seu potencial protagonismo
no fazer escolar é que situarei sua leitura, prezadx leitorx, ao longo deste post. Pois, atento aos discursos escolares
revestidos de formas-conteúdos ‘cientificamente comprovados’, “Podemos considerar as condições de produção
em sentido estrito e temos as circunstâncias da enunciação: é o contexto imediato. E se as consideramos em sentido
amplo, as condições de produção incluem o contexto sócio-histórico, ideológico.” (pág. 32 da mesma de E.P. Orlandi,
citada anteriormente) Portanto, o objetivo que proponho neste ensaio, é o de considerarmos outros
repertórios de linguagem para ensinar ciências, por outros focos de referencialidade epistemológica, que se
articulem por saberes, sensos, dissensos e (contra)culturas Outras, secular e originariamente circulantes
em nosso meio: o nós mesmxs: xs Outrxs.

Por repertório de linguagem compreendo todo e qualquer artifício, gesto,
impressão, silêncio, falsete, cacoete, percepção tecnocientífico, sociocultural, sócio-histórico,
de saberes discursivos contidos na memória do dizer (os já-ditos, cf. E.P. Orlandi, na mesma obra citada até aqui), 
ou seja, como um sistema operativo da língua por “regras de projeção que permitem ao sujeito passar da situação
(empírica) para a posição (discursiva)” (também desse livro de Orlandi, pág. 40). Pois, é isso o que pretendo
(res)significar neste discurso: nossas posições afrolatinoamericanas nos discursos escolares.

E, por esse procedimento de (res)significação discursiva, no dizer afrolatinoamericano:

“Resta dizer que todos esses mecanismos de funcionamento do discurso repousam no que chamamos formações
imaginárias. Assim não são os sujeitos físicos nem os seus lugares empíricos como tal, isto é, como estão inscritos na
sociedade, e que poderiam ser sociologicamente descritos, que funcionam no discurso, mas suas imagens que
resultam de projeções. São essas projeções que permitem passar das situações empíricas - os lugares dos
sujeitos - para as posições dos sujeitos no discurso. Essa é a distinção entre lugar e posição.” (conf. esclarece E.P. Orlandi
à pág. 40, desse livro; grifo meu). 

Por essa forma-conteúdo discursivo é que trago no subtítulo deste ensaio a ‘posição que cala’, ou seja,
sujeitos discursivos cujas narrativas foram alijadas pelo mote referencial eurorreferenciado, compondo repertórios
de linguagem na escola, por ‘saberes civilizatórios’ endereçando o funcionamento do Ensino de Ciências
na América Latina. E, assim, (cons)instituímos nosso ‘lugar de fala’ , empírico, (auto)cientifizado,
(auto)pedagógico, experiencial, universalizante/universalizado, a partir da retórica da pesquisadora e
filósofa afrobrasileira Djamila Ribeiro, 

“(...) pois estamos falando de localização social. E, partir disso, é possível debater e refletir criticamente sobre os mais
variados temas presentes na sociedade. O fundamental é que indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado em
termos de locus social consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir desse lugar, e como esse lugar impacta
diretamente a constituição dos lugares de grupos subalternizados.
(...) de herança escravocrata, pessoas negras vão experienciar racismo do lugar de quem é objeto dessa opressão,
do lugar que restringe oportunidades por conta desse sistema de opressão. Pessoas brancas vão experienciar do lugar
de quem se beneficia dessa mesma opressão. Logo, ambos os grupos podem e devem discutir essas questões, mas
falarão de lugares distintos. (...)” (pág. 85 do livro de sua autoria: Lugar de fala, dentre 6 obras da Coleção Feminismos
Plurais, que essa mesma autora coordenou, publicada em 2019, pela Editora Sueli Carneiro em parceria com a Editora Pólen.)

Assim, defino minha ‘posição que cala’, como um estudante e pesquisador afrobrasileiro, preto, anti-sexista,
anti-machista, anti-misógino, para repensar o repertório de linguagem de Ciências por outra via de discussão,
a da horizontalidade de saberes, sensos e significados afrorrefenciados, para entender a Ciência e a Tecnologia
por Outrxs, em seus sentidos. Ou melhor, por outras condições de produção, compreendendo
ambientes escolares (ou não) empíricos não-fragmentários, não-particionados, não-cartesianos. Por

“(...) condições que não só articulam e fazem dialogar as diferenças num marco de legitimidade, dignidade, igualdade,
equidade e respeito, mas que – ao mesmo tempo – alentam a criação de modos ‘outros’ 3  – de pensar, ser, estar,
aprender, ensinar, sonhar e viver que cruzam fronteiras. A interculturalidade crítica e a de-colonialidade,
nesse sentido, são projetos, processos e lutas que se entrecruzam conceitualmente e pedagogicamente,
alentando forças, iniciativas e perspectivas éticas que fazem questionar, transformar, sacudir, rearticular e construir.
Essa força, iniciativa, agência e suas práticas dão base para o que chamo de continuação da
pedagogia de-colonial.” (pág. 25 do texto da pesquisadora estadunidense Catherine Walsh, intitulado: Interculturalidade
crítica e pedagogia decolonial: in-surgir, re-existir e re-viver [págs. 12-42], capítulo do livro organizado por Vera Maria Candau:
Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas, publicado em 2009, pela Editora Martins Fontes) 

NOTA (3): C. Walsh explica, sustentando-se no livro de Walter Mignolo: Historias locales/diseños globales: colonialidad, conocimientos subalternos y pensamiento fronterizo, publicado pela editora Akal, em Madri, 2003, que esses ‘modos outros’ “ (...) estão assentados sobre as histórias e experiências da diferença colonial, incluindo as da diáspora africana e sua razão de ser, enraizada na colonialidade. Essas histórias e experiências marcam uma particularidade do lugar epistêmico – um lugar de vida – que recusa a universalidade abstrata.” (nota de rodapé da pág. 25 do citado texto da autora)

Logo, em interculturalidade crítica, transitando por pensamentos e linguagens de ambientes africanos,
afrolatinoamericanos (afrodescendentes), afro-orientais, afro-indígenas. Uma urgência para ensinar ciências
no plexo de reflexões da professora-pesquisadora e bióloga brasileira Suzani Cassiani, da Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC), quando na Coordenação da Cooperação Internacional entre Brasil e Timor-Leste,
em um de seus Programas de Formação de Professorxs timorenses, ao nos colocar que: “(...) a fragmentação dos
conteúdos nas diferentes séries do ensino de ciências está nas bases epistemológicas da própria construção
histórica da ciência, e a interdisciplinaridade é algo bastante rara nos bancos escolares.” (p. 232 do artigo:
no vol. 24, n. 1 da Revista Ciência&Educação, Bauru, publicado em 2018)

Imagem 2Extraída do site da Nações Unidas, como materiais promocionais do
nas línguas: árabe, chinês, inglês, francês, russo e espanhol.

NOTA (4.0): O Decênio Internacional para os Afrodescendentes: 2015-2024, surge a partir de “movimientos afro latinoamericanos en el contexto de la Tercera Conferencia Mundial Contra el Racismo celebrada en Durban, Sudáfrica, en el 2001, y mucho menos que la idea de representación en la ONU fue primero planteada por Malcolm X como vocero de la Organización de Unidad Afroamericana.” (extraído do site da organização não-governamental colombiana Viva La Ciudadanía, pelo texto: Movimientos sociales afrolatinoamericanos, de autoria de Agustín Laó Montes, intelectual ativista, professor-pesquisador da Universidad de Massachusetts; grifo meu). 

NOTA (4.1):  Os objetivos do Decênio Internacional dos Afrodescendentes: 2014-2024 são: “Promover el respeto, la protección y la realización de todos los derechos humanos y libertades fundamentales de los afrodescendientes, como se reconoce en la Declaración Universal de Derechos Humanos Universal; Promover un mayor conocimiento y respeto de la diversidad de la herencia y la cultura de los afrodescendientes y de su contribución al desarrollo de las sociedades;  Aprobar y fortalecer marcos jurídicos nacionales, regionales e internacionales de conformidad con la Declaración y el Programa de Acción de Durban y la Convención Internacional sobre la Eliminación de todas las Formas de Discriminación Racial, y asegurar su aplicación plena y efectiva.” (Objetivos del Decenio Internacional, extraído do site das Nações Unidas


Vídeo 1 - Discurso legendário de Malcolm X (1925-1965), sob o título:
"The Ballot or the Bullet" (em Detroit, 12 abr. 1964)
(publicado no canal npatou [YouTubeBR], em 6 jun. 2017)

Nesse discurso, Al Hajj Malik Al-Shabazz, mais conhecido como Malcolm X, defende o Nacionalismo Negro,
iniciando sua fala, dentro da congregação religiosa islâmica King Solomon Baptist Church, nos Estados Unidos,
em 12 de abril de 1964, em que assume essa convicção religiosa. Entretanto, orienta que devemos resguardar
toda e qualquer convicção de forma particular, interior, subjetivamente, pois devemos lutar, juntos, indistintamente,
objetivamente contra um inimigo comum: o racismo que silencia a garantia de direitos civis. E, essa luta advém de
uma educação política que deve ser exercitada nas urnas por votos de pobres, oprimidxs, àquelxs que se
lançam em defesa de direitos universais, também para xs negrxs. Toda e qualquer educação política
constitui o amálgama discursivo para o ensino de ciências. É ideológica e deve se pautar em direitos de ser
e de saber viver em meio à diversidade étnico-racial. Quer branca, quer negra, quer indígena, quer mestiça. 
Quer ocidental, quer oriental.

Imagem 3Selo postal com Malcolm X, como personalidade afroamericana.
(Extraído de Brasil Escola: História da América, do texto: Malcolm X,
de autoria do historiador brasileiro Daniel Neves Silva) 

Deste lugar da escola pública afrolatinoamericana, étnico-racialmente demarcada, tecnocientificamente
racializada, pela geopolítica de conteúdos que territorializa campos/áreas de acesso ao trabalho de pessoas
negras (pretas/pardas), cujx maioria de pretxs mora subindo morro, adentrando favela, compondo guetos,
vencendo a gravidade sobre a palafita, abrigando-se sob pontes, por praças e calçadas, é que pretendo conversar
de Ciências. De ensiná-las, politicamente, sob relações discursivas para uma educação que alie
Ciência-Tecnologia-Sociedades Múltiplas, uma educação AfroCTS. Compreendendo o Afro dentro da filosofia
Ubuntu, conforme nos esclarece o líder político, ativista africano, ex-presidente da África do Sul e Prêmio Nobel da

“Um viajante em visita à África do Sul poderia parar em uma aldeia sem ter que pedir comida ou água. Uma vez que ele
para, as pessoas dão-lhe comida. Esse é um aspecto do ubuntu, mas o ubuntu tem vários aspectos. O ubuntu
não significa que as pessoas não devem enriquecer. A questão, portanto, é: Você vai fazer isso e permitir que a
comunidade ao seu redor possa melhorar?” (por Nelson Mandela, publicado no site Por dentro da África, em 24 set. 2014,
brasileira que atua como correspondente na África, Natalia da Luz)

Sob essa perspectiva, do lado de cá da linha 5, compreendo repensarmos posições discursivas no ensino
de ciências naturais, compreendendo especificidades originárias de países latinoamericanos com
seu gene afrodescendente, que carrega na linguagem-pensamento amestiçada a constituição e a
formulação de condições de produção potencialmente dialógicas, afirmativas dx Outrx, de outras verdades.
Em contraposição ao que só produz sentidos de “verdade que seria riqueza, fecundidade, força doce e insidiosamente
universal.” (assim nos diz Michel Foucault à pág. 19 de seu livro: A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de
France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970 - Traduzido por Laura Fraga de Almeida Sampaio, em 24ª edição,
publicada pela Edições Loyola, em 2014, parte da coleção Leituras Filosóficas) Colocando-nos, pessoas  latino-americanas,
como autorxs e protagonistas de nossa própria história, por nossxs próprixs heróis e heroínas, por nossxs referentes
(onto)epistêmicos. Embora, xs colonizadorxs de nossos repertórios de linguagem tenham usado uma tecnociência
sob moldes de produção/exploração liberais, como uma “(...) prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos
aqueles que, ponto por ponto, em nossa história, procuraram contornar essa vontade de verdade e recolocá-la
em questão contra a verdade (...)”, continua Foucault nessa aula, nas págs. 19-20, do mesmo livro; com grifos meus.
A vontade de verdade que precisa ser (re)posicionada em nossos discursos, a partir da verdade em nosso lugar de fala:
dx afrolatinoamericanx, no qual constituímos e formulamos nossos problemas para ensinar ciências. País a país, realidade
(trans)nacional a realidade (trans)nacional, compreendendo outras formas-conteúdos para a Educação em Ciências
na América Latina. 

NOTA (5):  Faço aqui uma analogia com o capítulo do livro Epistemologias do Sul, organizado pelo professor-pesquisador português Boaventura de Sousa Santos e pela professora-pesquisadora moçambicana Maria Paula Meneses, intitulado: Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes, de autoria do primeiro, publicado pela Cortez Editora, em 4ª reimpressão da 1ª edição, em 2010, que coloca à pág. 32 que o: “ ‘o outro lado da linha’ desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível.” (grifo meu)Disso é que me situo do lado de cá da linha, como o Outro, inexistente ao conhecimento hegemônico.








Imagem 4Mapa invertido de autoria do pintor, desenhista, escultor, escritor e



Pela inversão de lógicas estabelecidas no pensamento e na linguagem científica, acirradas historicamente nos
discursos civilizatórios’, com tendência homogeneizante, cabe a cada internalidade pluricultural de países
latinoamericanos a busca por problemas cotidianos da periferia,  pelas implicações da ciência e da tecnologia
no meio social, por nossas formas de comunicar em movimentos urbanos 6, por nossas formas de organizar o
espaço, pelo uso e ocupação do solo. Assim, por problemas que os conteúdos de Ciências Naturais ensinados na
escola dialogassem com esse cotidiano causal.

“Por isso, devemos entender uma proposição de conhecimentos mais focados aos problemas poderia melhor contribuir
para o país, no sentido de que pudessem refletir e tentar resolver seus próprios problemas, e não problemas importados
de sociedades ocidentalizadas. Porém, nem sempre o que pensamos ser um problema, o é. Na verdade, pode ser
um não-problema, e isso também precisa ser trabalhado na formação de professores.”  (p. 236 do artigo: Reflexões sobre os
educação em ciências, no vol. 24, n. 1 da
Revista Ciência&Educação, Bauru, publicado em 2018, de autoria da bióloga Suzani Cassiani)

NOTA (6): Em uma das aulas da disciplina condensada ofertada pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica (PPGECT), da UFSC, com o nome: Estudos Decoloniais, Epistemologias do Sul e Temáticas Socioambientais na Educação Científica e Tecnológica, ministrada pela professora-pesquisadora e bióloga Tatiana Galieta (da Universidade Estadual do Rio de Janeiro-UERJ) e pelo professor-pesquisador e engenheiro, Irlan Von Linsingen, nos dias 29 e 31 de maio e 3 e 5 de junho de 2019, comentei sobre os movimentos de transeuntes nas grandes cidades, e sobre o caos que significa quando chove e estamos usando guarda-chuva. Ou seja, uma aparente falta de noção espaço-temporal que deveria ser tributada ao ensino de ciências, aliando dança e música. O professor Irlan ponderou sobre esse fato observado no Vietnã, como algo que aparentemente parece caótico, mas que está disperso nos códigos sociais de movimento. Como uma comunicação tácita que não precisa de intervenções de agentes externos, uma vez que é sociocultural. Assim, percebi o quanto tentamos tributar ao ensino de ciências a carga do salvacionismo para o estado das coisas e das pessoas, em seu modo de operar socialmente. Isso é um efeito de colonialidade do ser: “La certidumbre del sujeto en su tarea de conquistador precedió la certidumbre de Descartes sobre el dyoe como sustancia pensante (res cogitans), y proveyó una forma de interpretarlo.” (pág. 133 do texto: Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto, de autoria do filósofo porto-riquenho Nelson Maldonado-Torres, publicado em 2003) 

Comprovando socioculturalmente um lugar de fala

É por essa mesma cor, na autoria do cientificamente comprovado, que a Sociologia, nas teses do peruano Aníbal
Maldonado-Torresos explica o que nos fez calar (mente/corpo) no tempo e no espaço das Ciências: pela razão neutra. Socioculturalmente, por essa Ciência tradicional, estamos na posição do Outro: simples corpos,
historicamente subalternizados.

“Esta total separación entre mente y cuerpo dejó al mundo y al cuerpo vacío de significado y  subjetivizó radicalmente a
la mente. Esta subjetivación de la mente, esta radical separación entre mente y mundo, colocó a los seres humanos en una
posición externa al cuerpo y al mundo, con una postura instrumental hacia ellos.
Se crea de esta manera, como señala Charles Taylor, una fisura ontológica, entre la razón y el mundo, separación que
no está presente en otras culturas. Sólo sobre la base de estas separaciones -base de un conocimiento descorporeizado
y descontextualizado - es concebible ese tipo muy particular de conocimiento que pretende ser des-subjetivado (esto es, objetivo)
y universal.” (do texto: Ciencias sociales: saberes coloniales y eurocéntrico, pág. 5, de autoria de Edgardo Lander, publicado pela
CLACSO - Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, em 2000).

Também menciono o artigo de Thuinie M. Vilela e Armando Daros Junior, publicado em 2005, na e-Revista da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), a Rev. Faz Ciência, intitulado: “O cientificamente comprovado:
reflexões sobre a autoridade da ciência na sociedade contemporânea”, entre as páginas 27-40. Vilela e Daros Junior (2005)
fazem uma discussão sobre teorias emergentes das elites europeias científicas do século XIX, e que ainda no tempo
presente são revisitadas, e corroboradas, como a exemplo de: “determinismo racial, a frenologia , fisiognomia,
a craniometria, a antropometria e a eugenia” (p. 31) Embora classificadas como pseudociências, essas
excentricidades do mundo científico revelaram uma construção de conhecimentos que mobilizou historicamente
sua racionalidade, a forma de mensurar cada universo sociocultural dominado, naturalizando experimentações
e manipulações de corpos relegados à subalternidade: nós Outros.  Isso forjou o imaginário científico, como um
establishment institucional em posição Ocidental superior. A posição capital de mentes pensando cientificamente
por amostras contidas em matéria-prima de corpos e natureza, cartesianamente ordenados. Ou seja,
enviesava-se, a partir daí, um conhecimento cientificamente comprovado, de abscissas e coordenadas (X,Y),
definindo quadrantes subentendidos em plano único, possível pela soberana agência civilizatória que institui o
homem branco na origem de todas as coisas (0,0).  

“(...) Los diferentes discursos históricos (evangelización, civilización, la carga del hombre blanco, modernización, desarrollo,
globalización) tienen todos como sustento la concepción de que hay un patrón civilizatorio que es simultáneamente superior
y normal. Afirmando el carácter universal de los saberes científicos eurocéntricos se ha abordado el estudio de todas las
demás culturas y pueblos a partir de la experiencia moderna occidental, contribuyendo de esta manera a ocultar, negar,
subordinar o extirpar toda experiencia o expresión  cultural (...)”
(do mesmo texto do sociólogo venezuelano Edgardo Lander, na pág. 11, citado anteriormente)






Imagem 5Extraída de: Plano cartesiano e funções,
do site ProProfs: delightfully smart tools.

Rotas, trajetórias, localizações, atalhos, caminhos de ‘possibilidades’ plotadas num ‘plano civilizatório’. Anulatório dx Outrx.
O mesmo plano que gesta e pelo qual circulam os atuais discursos de Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS). Discursos
eurorreferenciados. 

As Ciências naturais permitiram um avanço na investigação e utilização de novos materiais encontrados
nas colônias, enquanto as Ciências sociais elaboravam teorias suficientemente plausíveis para justificar
o domínio europeu, embora ambas façam parte da ideologia da classe dominante da época.” (pág. 31, do
mesmo texto de Vilela e Daros Junior, 2005; grifos meus) E, para tais agências de produção científica,
não importavam se aqueles materiais fôssemos nós, xs aborígenes: nações, reinos, impérios e culturas
do lado de cá da linha, do Equador. Essa mesma agência institucional sedutora (e, da qual faço parte) que chancela,
por sua tez de autoridade, produtos, processos e serviços como: cientificamente comprovados.

Assim, Vilela e Daros Junior transitam pelos descritores: ciência-ideologia-poder, construindo uma
analogia argumentativa aproximada aos textos: do sociólogo brasileiro Pedro Demo, intitulado: Ciência, ideologia e
poder: uma sátira às Ciências sociais (publicado pela Edit. Atlas, em 1988); e, de Paulo Luís Schiavoni, Ciências e
pseudoCiências  (publicado pela Edit. Trajetória, em 1977).

A socióloga e pesquisadora brasileira Pâmela Marconatto Marques, em sua tese de doutoramento, intitulada: 
defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em jun. 2017,
assevera que: 

Pensar o papel das Ciências Sociais por meio deste vínculo entre conhecimento e disciplina nos permite falar do
projeto de modernidade levado a cabo desde o encontro colonial e atualizado pelas lógicas desenvolvimentistas do
pós-segunda guerra também como exercício de violência epistêmica, entendida como colonização da vida pelo
discurso. Verificamos, assim, como certas representações se tornam dominantes e modulam com rigidez os modos de
imaginar a realidade e interagir com ela, habilitando algumas associações – como, por exemplo, a relação entre Produto Interno Bruto e desenvolvimento - e interditando outras – como, por exemplo, a de pobreza com bem-viver.” (p. 71 dessa tese; grifos meus)








Imagem 6 - Mapa de países menos desenvolvidos no mundo, em 2016. 
Citado na Tese doutoral de P.M. Marques (2017).

Embora o mapa traduza a totalidade de 34 países na África, 9 na Ásia, 1 no Caribe e 4 no Pacífico Sul, e esteja
disponível no site oficial da UNCTAD, o mesmo informa, em nota, que não representa oficialmente um
endosso/aceitação das Nações Unidas. Mas serve para situarmos a condição geopolítica do conhecimento científico
e tecnológico que fatalmente situa, no espaço e no tempo da ‘empresa liberal civilizatória’, que o ‘cientificamente
comprovado’ sustenta a racialização de sensos, saberes e significados de matrizes originárias, encontrando
o ambiente propício de perpetuação de poder por suas escalas performáticas por critérios Centrais (Europa e E.U.A.)
de desenvolvimento econômico e social. Tanto que, essa agência trabalha a classificação pelos critérios:
I) renda per capita; II) índice de ‘ativos humanos’ composto por indicadores de nutrição, mortalidade infantil,
matrículas escolares e níveis de analfabetismo; e III) ‘índice de vulnerabilidade econômica’, composto por indicadores de exposição a choques naturais, comerciais, dimensões do país e grau de isolamento” (p. 82 dessa tese)

Trazendo a discussão para o lado de cá do oceano Atlântico (o meu), para a América Latina, poderemos
questionar, a partir de nossos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento (parece-me que
ainda nos enquadramos na performance dEles, não?!), o seguinte: 1) A quem endereçam os serviços, os
processos e os produtos cientificamente comprovados do mercado? 2) Cientificamente comprovados por
quais cores imaginárias? Se levarmos em conta as facetas nefastas de poderes legitimados na América Latina,
pela ascensão de representantes, que se pré-elegem como pessoas de bem 7 - eleitxs pela grande massa
de oprimidxs - em suas prioridades socioculturais e ideológicas, representando-nos politicamente, temos
atualmente xs bem à direita, deslocadxs de nós. 

NOTA (7): Compartilho dos sentidos produzidos pelo jornalista brasileiro Zê Carota, para esse termo, no texto de sua autoria: Pessoas de bem - pra quem?, publicado em Brasil247, em 2 jan. 2017. E, em convergência, também, pelo jornalista brasileiro, Ricardo Kotscho, traduzido em: Kotscho: “Pessoas de bem” e “Novo Brasil”: do que se trata?, nesse mesmo veículo midiático, em 1º fev. 2017.

Em contradição sociológica e filosófica, emerge o termo à esquerda. À esquerda daquilo que historicamente
nos excluiu, nos alijou, nos silenciou, nos negou, escondendo-nos por trás da escravidão de nossos corpos,
desde o século 15, uma das facetas geopolíticas do conhecimento científico e tecnológico. Daí, que:

Una de las consecuencias negativas de la geopolítica del conocimiento es impedir que el pensamiento se genere
de otras fuentes, que beba en otras aguas. Caramba, ¿cómo voy a pensar la sociedad civil y la ‘inclusión’ sin Habermas
o Taylor? ¿Cómo voy a pensar a partir de los zapatistas o de Fanon que produjeron conocimiento basados en otras historias,
la historia de la esclavitud negra en el Atlántico y la historia de la colonización Europea a los Indígenas en las Américas?
Otra consecuencia de la geopolítica del conocimiento es que se publican y traducen precisamente aquellos nombres cuyos
trabajos ‘contienen’ y reproducen el conocimiento geopolíticamente marcado. ¿Quién conoce en América Latina al intelectual
y activista Osage, Vine Deloria, Jr? ¿Cuántos en América Latina tomarían a Frantz Fanon como líder intelectual en vez de
Jacques Derrida o Jurgen Habermas?” (Trecho da entrevista da professora-pesquisadora estadunidense Catherine Walsh
com o semiólogo argentino Walter Mignolo (1941-), intitulada: Las geopolíticas del conocimiento y colonialidad del poder, publicada
na revista latino-americana Polis, n. 4, em 2003)

Matematicamente, respondendo às questões anteriores: (1) A quem endereçam os serviços, os processos
e os produtos cientificamente comprovados do mercado? Resposta provável: A nós, pessoas latino-americanas,
caribenhas, orientais e africanas de cor. (2) Cientificamente comprovados por quais cores imaginárias? Resposta mais
que provável: Pela Ciência branca, unicolor, a partir de testes para a qualidade de produtos, de processos e de serviços
que fazem com nossos corpos e com nossas mentes de cor. Como exemplo, a própria concepção anatômica
de instrumentais ginecológicos, como o espéculo (utilizado para exames no interior da vagina humana) e
cirurgias, como: cesarianas, retirada de abscessos urogenitais, dentre outros, feitos sem anestesia em pessoas
escravizadas (séculos XVIII e XIX) 8.  

NOTA (8): Ver texto publicado em Geledés: Instituto da Mulher Negra, em 22 jul. 2016, de autoria da enfermeira e pesquisadora em Saúde Pública, Emanuelle Góes, intitulado: Racismo científico, definindo humanidade de negras e negros. A 2ª Guerra Mundial (1939-1945) foi cenário de tantas outras atrocidades com povos judeus e outros dominados, justificando ‘inovações científicas’ na medicina e na anatomia, pela Ciência nazista, eugenista.  

Assim, fomos elaboradxs pela Ciência que está posta: patriarcal, branca, homocêntrica, sexista, binária,
higienista, imperialista, orientando o emprego de cientistas, para senhorxs empoderadxs, ante o trabalho
notório por corpos homogeneizados socioculturalmente na esteira de produção capitalista. E, assim, eis
nossos sentidos de mundo pela Física de G. Galilei, I. Newton, A. Einstein; pela Química de A. Lavoisier, R. Boyle,
de J.J. Berzelius; pela Biologia de JB. Lamarck, C. Darwin, A. Lutz. Eis a Ciência que aprendemos pela
linguagem-pensamento masculino se perpetuando sedimentando currículos escolares, vidas acadêmicas.
Comprovando cientificamente o conhecimento válido para fazer social de um Ocidente civilizado, sedimentando
nossa Ciência na história do tempo presente 9.

NOTA (9): Faço alusão ao Seminário: “História do Tempo Presente e História da Educação”, oferecido pelo Programa de Pós-Graduação, da Universidade Federal de Santa Catarina, ministrado pelo professor-pesquisador Dr. Alexandre Fernandez Vaz em parceria com a professora-pesquisadora Dra. Maria Teresa Santos Cunha, vinculada aos Programas de Pós-Graduação em História e de Pós-Graduação em Educação, da Universidade do Estado de Santa Catarina, nos dias 22 maio, 12 e 13 jun. 2019.

“No transcorrer do século XV, a expansão de Portugal, ao longo da costa africana, favoreceu, com o aval de bulas papais,
o tráfico negreiro. Totalizando 1.552.000 escravizados, trazidos nos tumbeiros ou navios negreiros, a América espanhola
perde em índice numérico para o Brasil que, segundo estudos recentes na Universidade de Emory, em Atlanta, atingiu o
total de 4,8 milhões de escravizados.” (fragmento do texto: A escravidão nas Américas, de autoria do pesquisador e
coordenador do setor de imprensa do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa, o historiador Carlos Alberto Saraiva
da Costa Leite, para o Geledés: Instituto da Mulher Negra, em 31 jul. 2016; grifos meus)

Permanecemos (sub)entendidxs, mais contemporaneamente, pela escravidão, também, de nossas mentes: por
uma Ciência, uma Tecnologia e uma Educação formuladas por e possível somente para uma única sociedade:
a da direita branca. Assim: “Penso, mas não existo…”, na contra-paráfrase da máxima do filósofo, físico e matemático
francês, René Descartes (1596-1650): Cogito ergo sum. Estaria Descartes empurrando goela abaixo essas palavras em nossas bocas?!






Imagem 7 - Filósofo porto-riquenho Nelson Maldonado-Torres denunciando

significados sobre sensos, saberes e significados socioculturais de povos

subalternos, para o Centro do mundo 10. (Extraída de: Universidade de Rutgers:

School of Arts and Sciences, Nova Jersey, EUA)


NOTA (10): O prédio ao fundo da Imagem 1 é a fachada do Palácio da Trindade, situado na Rua da Trindade, no Chiado, em Lisboa, Portugal.

Enunciações de uma pedagogia decolonial, pelo rapper afrobrasileiro Baco Exu do Blues: uma cor do imaginário

Lançado em novembro de 2018, o álbum Bluesman, de autoria do cantor, compositor e rapper afrobrasileiro Baco
Exu do Blues 11, é profundo de seu lugar e de sua posição ideopolítica de homem preto, proveniente da periferia
soteropolitana, movimenta uma pedagogia para fazer circular sua criação artística que tem inovado o universo
musical. Recentemente foi premiado com o Cannes Lions 2019, tida como a mais importante premiação
do mercado publicitário mundial pelo lançamento do álbum Bluesman, em novembro de 2018. De composição
autoral, a faixa-título Bluesman narra uma densidade de sentidos e significados do que é ser preto livre, em
ascensão financeira, com nuances de política, ciência, numa poesia contundente e social. O Filme original, de
8min e 15 seg, clipe musical produzido por Leonardo Duque e dirigido por Douglas Bernardt, promove uma
transcendência entre o real e o imaginário vivido por um homem preto atravessando uma dura e contundente
trajetória de luta, fazendo sua ciência em cada passo, em cada observação, em cada experimentação de
seu lugar. Com o objetivo de chegar a um currículo geopoliticamente eurorreferenciado, que não incorpora
o que ele traz das ruas, ou mesmo o que ele é. A instituição escolar. Lá fora é tudo concreto, táctil, empírico,
mundano. Lá dentro da escola musical de blues os instrumentos são outros, os regentes são de sua cor,
carregam sua história.

NOTA (11): Nome artístico de Diogo Alvaro Ferreira Moncorvo, nascido na cidade de Salvador, estado da Bahia (Brasil), em 1996.

Buscamos, na pedagogia decolonial, um lugar que constrói a ciência do lado de cá: por um efeito-leitor e por uma
linguagem-autora em condições de produção, ambos imersos nas tensões da realidade afrolatinoamericana.
Assim como o protagonista emerge, torna-se cientista, é assim que queremos uma escola em continuidade, na continuidade
da cotidianidade, pacificando relações, dialogando com espaços, negociando tempos, transgredindo ritmos
curriculares. O efeito-leitor (também na concepção de E.P. Orlandi) afeta a memória discursiva de interlocutorxs,
estudantes da Educação Básica, assim como através da música Baco Exu do Blues revelou sua forma-conteúdo
de ver o mundo: em notas e ritmos de embate com os poderes liberais constituídos. Por essa transgressão da
(re)existência e do (re)viver que Catherine Walsh nos faz compreender como devemos ensinar ciências.
Vejamos a primeira estrofe da letra:

(letra extraída do site VagaLume: música é tudo)

Eu sou primeiro ritmo a formar pretos ricos
Primeiro ritmo que tornou pretos livres
Anel no dedo em cada um dos cinco
Vento na minha cara eu me sinto vivo
A partir de agora considero tudo blues
O samba é blues
O rock é blues
O jazz é blues
O funk é blues
O soul é blues
Eu sou Exu do Blues
Tudo que quando era preto era do demônio
E depois virou branco foi aceito eu vou chamar de blues
É isso entenda, Jesus é blues. Falei mermo!

Nos 1º e 2º versos: ‘pretos ricos’ e ‘pretos livres’ compreendem a categoria de heteroidentificação étnico-racial
que nos revela um pensamento de que a condição de ser preto e rico, promove o bônus da liberdade. E, por tal liberdade,
dada a riqueza material, ele poderá refazer o mundo, travesti-lo daquilo que historicamente foi-lhe negado por ser coisa
de preto, como as linguagens musicais do: samba, funk, soul, jazz, rock (que tem raiz em ritmos musicais negros:
blues e o gospel). Imaginemos as linguagens das ciências instituídas a partir de diálogos interculturais com
conhecimentos originários de tantas línguas de povos indígenas, e posteriormente de outras tantas de povos
africanos, desde a invasão das Américas… 

E, assim, avança na 2ª estrofe, pelo fenômeno da refração da luz, em Física, e por elementos étnico-raciais de
povo e de gente. Traz a cultura neo-expressionista americana na obra de Jean-Michel Basquiat, colocando-se da
sua realidade, do seu mundo perceptivo, concreto. Traz também relações de volume de líquidos (Matemática), entre gotas e
enchente, bem como de velocidade nas relações de palavras: pressa e urgente; lento e hiperativo (3ª estrofe).
São descritores físicos e matemáticos que remetem à velocidade de corpos. 

Eu amo o céu com a cor mais quente
Tenho a cor do meu povo a cor da minha gente
Jovem Basquiat, meu mundo é diferente
Eu sou um dos poucos que não esconde o que sente
Choro sempre que eu lembro da gente
Lágrimas são só gotas o corpo é enchente
Exagerado eu tenho pressa do urgente
Eu não aceito sua prisão minha loucura me entende

Babe, nem todo poeta é sensível
Eu sou o maior inimigo do impossível
Minha paixão é cativeiro, Eu me cativo
O mundo é lento ou eu que sou hiperativo?

Nas 4ª e 5ª estrofes, os versos trazem uma forte denúncia social e religiosa, desconstruindo ortodoxismos,
para incluir, através da escuta e do dizer, aqueles que estão à margem da sociedade: xs oprimidxs. E, da possibilidade
dessas mesmas pessoas, da favela, alcançarem o poder, se o mundo - e, no caso particular que defendo aqui,
a educação científica e tecnológica - mudar para se tornar uma Wakanda: país fictício idealizado a partir da África
subsariana. Ou melhor, um currículo de liberdade sociocultural: uma Wakanda das Ciências.

Me escuta quem cê acha que é ladrão e puta
Vai me dizer que isso não te lembra cristo
Me escuta quem cê acha que é ladrão e prostituta
Vai me dizer que isso não te lembra cristo
Vai me dizer que isso não te lembra cristo

Eles querem um preto com arma pra cima
Num clipe na favela gritando cocaina
Querem que nossa pele seja a pele do crime
Que, Pantera Negra só seja um filme
Eu sou a porra do Mississipi em chama
Eles têm medo pra caralho de um próximo Obama
Racista filadaputa aqui ninguém te ama
Jerusalém que se foda eu tô a procura de Wakanda

Esse estado de enunciações de Baco Exu do Blues contém o que é preciso ser pensado para promover uma
revisão na Educação em Ciências, considerando tudo o que está posto, mas que seja permeada por outros
elementos socioculturais e tecnocientíficos que representem múltiplos lugares de fala pela favela, pelo meio rural,
pelas cidades, pelos sertões, pelas montanhas, pelas serras, por todos os espaços de vida. Em pluriversidade.

Imagem 8 - Baco Exu do Blues, capturada do portal de notícias Yahoo! Notícias,
de Luiz Fernando Vianna, publicado em 25 nov. 2018.

Vídeo 2 - Bluesman (Filme Oficial). Extraído do canal Baco Exu do Blues (YouTube),
publicado em 23 nov. 2018. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=-xFz8zZo-Dw



O cientista musical, título que atribuo aqui a Baco Exu do Blues, desafia-nos, também, na interdisciplinaridade contida
em seu nome artístico, sendo composto por: 

Baco = deus grego Dioniso. Símbolo Ocidental. Como uma divindade de excessos sexuais e da natureza,
da ebriedade, do vinho. Da boemia.

Exu = um orixá de religiões de matrizes afrobrasileiras, como: Jurema, Omolokô, Candomblé de Caboclo, Umbanda.
Não possui gênero definido.

Blues = “um gênero e forma musical originado por afro-americanos no extremo sul dos Estados Unidos em torno do
fim do século XIX.” (ver Blues, em Wikipédia)

Esse nome artístico, a exemplo das Ciências Naturais, traz em sua retórica a teoria e a prática, em uma empiria de
expressividade rítmica, de narrativas combativas do racismo estrutural, e do racismo recreativo que o afrobrasileiro
Adilson Moreira, pesquisador, advogado e psicólogo, traduz como: “um tipo de política cultural que procura arruinar
a reputação social de minorias raciais, o que é a base para que elas possam ser vistas como pessoas socialmente competentes.
(pág. 189 do livro Racismo Recreativo, da coleção Feminismos Plurais,
publicado pela Editora Pólen & Sueli Carneiro, em 2019, do referido autor). Ou ainda, concordando com esse
autor, que essa é uma manifestação do discurso de ódio. Assim, Baco Exu do Blues, com seu vídeo, constrói um campo
representacional para controlar os sentidos produzidos sobre o homem preto que protagoniza todo o tempo
da cena. Com dignidade, luta, transcendência ancestral, respeito, alteridade, amor. Bases enunciativas para uma
ciência afrolatinoamericana. Destaco, também, o personagem Caíque, de 10 anos, que mora no Morro do Alemão (Rio de Janeiro, Brasil) -
iniciando o vídeo - como um estudante do Ensino Fundamental, que gosta de jogar bola, soltar pipa, desenhar, e que
quer ser médico, quando crescer. Um eu-Caíque, configurando minha realidade de menino preto ex-morador de Bonsucesso
- periferia carioca colada naquele Morro - e cheio dos mesmos gostos e sonhos.

Para finalizar, como em qualquer processo de avaliação escolar, algumas pessoas reais falam, no vídeo, de suas
impressões sobre: felicidade, o ente Exu, sentidos de sociedade, utopia. Parece um revisitação aos conteúdos, na
perspectiva das aprendizagens dxs estudantes. É enunciativo. É decolonial. Forma-conteúdo potentes para
pensarmos em metodologias transgressoras para ensinar ciências. Eis a cor do imaginário socioculturalmente comprovado
para ensinar ciências.

Agradecimentos

Quero agradecer, primeiramente, ao Prof. Irlan Von Linsingen e à Profª Tatiana Galieta12 pela oferta da disciplina
Estudos Decoloniais, Epistemologias do Sul e Temáticas Socioambientais na Educação Científica e Tecnológica,
que em 30 horas-aula promoveu reflexões profundas e profícuas sobre o que somos e o queremos ser e saber lançadxs ao
desafio de Ensinar Ciências, de promover a educação científica, a educação tecnológica, a educação para a vida real,
a partir do Sul Global. E, também, a todxs xs colegas que participaram das aulas, fazendo-nos refletir e ruminar sobre
ditos e não-ditos. Obrigado a vocês!    


NOTA (12):  A professora Tatiana Galieta, ao me indicar em 22 jul. 2019, o videoclipe oficial da música Bluesman, despertou meu interesse de explorar a obra desse magnífico artista, que pra mim é um pegagogo decolonial: comunica ciência e tecnologia do lado de cá da linha. Obrigado, Profª Tatiana, pela sensibilidade artística !

Comentários

  1. Vou ter que estudar esse texto de tão maravilhoso que está!
    E viva Baco Exu do Blues porque Jesus é blues!
    Já ouviu a música "Queima a minha pele"? É a minha preferida.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Profª Tati, bom dia!
      Sim. Todas as músicas do álbum Bluesman são de romper nossa atual forma-conteúdo de perceber o mundo.
      Esse cara é um 'cientista' ! Muito inspirador...

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Sequência Didática: Corpo, ciência e esporte: Encontros e Desencontros. “O Caso Tifanny Abreu na superliga de Vôlei”

Africanização do currículo