Meu corpo feminino é político

Por tradição, após nossas aulas no PPGECT tomamos uma cerveja. Foi no Iega que minhas amizades mais profundas nasceram. Aprendi, na experiência de dias frios em Floripa, que o espaço de convivência fora da Universidade é mais importante do que o que fica para dentro de seus muros. 
E estávamos ali, após a aula da disciplina condensada, naquele bar que nem existia na época em que era doutoranda, falando sobre nós,  mulheres, e nossas experiências em relacionamentos com homens.
Nesse ambiente a gente pode falar alto, pode rir alto e pode falar sobre assuntos que geralmente não ousamos nem tocar quando dentro da universidade.
Conversávamos sobre sermos obrigadas a ceder nossos corpos para o prazer do homem. Todas nós (estávamos em seis) já tínhamos sido estupradas por nossos ex-companheiros. Sim, o termo correto é estupro. Quando fazemos sexo sem consentimento, mesmo quando a gente gosta do cara, é estupro. 
O único homem que estava conosco ficou estupefato. Eram 3 gerações de mulheres dizendo que haviam sido violentadas sexualmente por seus parceiros. 
Aprendemos que nosso corpo deve ser fonte de prazer do outro, do homem inseguro, do homem que tem desejo em momentos em que estamos secas por razões estritamente hormonais. Esse homem abusa dos nossos corpos quando sabe que temos qualquer vínculo emocional, manipula nossa mente e se apodera da nossa carne. 
Uma de nós disse que sua avó era violentada pelo avô e que sua mãe presenciava a tudo. Como nós,  mulheres, mães podemos romper com essa cultura? 
Acho que falando. 
Se a gente expõe abertamente o que já vivenciou a outra se reconhece e te acolhe. Mesmo quando ela não diz nada. Um olhar ou o silêncio já são atos de solidariedade.
Lemos na disciplina autoras e autores que falam da decolonialidade do Ser. Das diversas formas de violência, de anulação do outro, de relações de poder que passam pela anulação de identidades. 
Há séculos homens dispõem sobre os corpos de mulheres da forma como bem entendem. Éramos meras reprodutoras, depois um outro tipo de mão de obra e hoje acumulamos funções que nos esgotam física e emocionalmente. 
O olhar decolonial nos ajuda a compreender geopoliticamente (usando aqui Maldonado-Torres) esse histórico de exploração e invasão de nossos corpos femininos. A mim, permitiu olhar para corpos femininos (não apenas de mulheres nascidas assim, mas também construídos) de uma outra forma. Entendi o que a expressão "corpo político" significa em um país como o nosso, em uma história que foi forjada às custas de estupros de mulheres indígenas e de mulheres negras escravizadas. 
Meu corpo político passou a reconhecer comportamentos e a desnaturalizar alguns padrões entranhados em mim. Tive vontade de falar com outras mulheres (e homens também!) sobre as várias violências que já sofri e que sei que muitas de minhas amigas também sofreram.
É na escuta, no afeto cotidiano, que conseguimos superar essas violências e nos fortalecemos para falar com nossas filhas, nossas sobrinhas e estudantes. Falar é importante! Não podemos nos calar. Não seremos mais interrompidas.

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