"Bota a cara pra morrer"

TRATRATRATRAAAAAAA
TRATRATAAAATRAAAAAA
Rajadas de tiros.
Mais tiros... Muitos...
Cruzavam riscos vermelhos de um lado para o outro.
No dia seguinte o mais do mesmo.
Outro corpo jogado no lixo da descida da ladeira.
Às vezes não tinha corpo. Eram pedaços, partes disformes que poderiam ser braços e pernas.
Lembro do homem, meio roxo, meio preto, sem cabeça. Uma desova feita pela madrugada e exposta em plena luz do dia.
Já não me chocava.
Antes eu olhava com curiosidade misturada com medo.
Depois passava tranquilamente apenas evitando aquele lado direito da rua quando descia para ir à escola.
Antes eu achava que eram bandidos. Diziam que era guerra entre facções e que os caras do outro morro tinham tentado invadir. Se deram mal. 
Só vim a entender o que acontecia ali depois que sai de lá e vim morar perto de outro morro. Um pouquinho mais afastada com o status agora de quem não tá no pé da favela.
O distanciamento da violência sentida nos ouvidos com o pipocar dos tiros, quando meu corpo tremia somente com o disparar do primeiro estampido (porque depois já nada sentia), me colocou em outro lugar, social, cultural.
Paralelamente comecei a estudar, a dar aulas, a tentar entender um pouco melhor a dinâmica geográfica e social da minha cidade (1).
Sempre me senti favelada, gosto de funk pancadão, desfilava em escola de samba. Mas não sou preta. Nunca sofri qualquer discriminação racial. Nunca fui abordada por um PM na subida do morro e tive minha mochila revistada.
Um conflito que hoje entendo.
Difícil é lidar com as emoções. Como a de hoje ao saber que um bebê moreu dentro de sua casa durante (mais uma) operação policial na CDD (2). 
Não são os bandidos que eu imaginava que matam.
É o genocídio da população negra, de crianças e jovens pretos (3) em curso em pleno século XXI empreendido por aqueles que detém poder nessa modernidade capitalista (4).
Seguem morrendo negros como nos tempos em que estes foram arrancados de suas terras e trazidos escravizados para outro território sul colonial.
Disseram a eles que tinham sido "libertados" trezentos anos depois, mas eles seguiram marginalizados (sobre)vivendo em seus barracos nas favelas, ocupando os morros sem água e esgoto, descendo as ladeiras para trabalhar antes ainda do amanhecer.
Pretos e pretas que como eu viam os corpos esquartejados.
Eu nunca tive medo de um dia meu corpo estar ali entre o lixo.
Hoje sei qual era a diferença entre nós.
Reconhecer que a estrutura da sociedade moderna se baseia na diferença colonial (5), no racismo, na ruptura entre o "ancestral/tradicional" e o "desenvolvido/avançado" (6) nos dá outra perspectiva ao olhar para os eventos recentes, cotidianos. 
A sangria somente será estancada quando não mais comprarmos a ideia (no sentido mercadológico, inclusive) de que a solução reside na inclusão no sistema. O capitalismo não inclui ninguém, ele devora, mata, pica em pedaços.

* O título deste post é uma das frases que os traficantes gritavam para os do morro vizinho enquanto trocavam tiros no bairro do Catumbi.

(1)
 O ponto vermelho é a rua onde morei no Catumbi.
(Fonte Google Maps)

A rua fica entre os morros/favelas/comunidades: Fogueteiro, Fallet, Coroa e Mineira.
(Fonte Google Maps)

(2) Notícia em https://extra.globo.com/casos-de-policia/bebe-que-morreu-na-cidade-de-deus-nao-foi-baleado-segundo-hospital-causa-da-morte-sera-investigada-23844545.html
(3) Essa notícia é do ano passado (2018) e foi uma das que mais repercutiu na mídia, embora seja fato corriqueiro nas favelas: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/22/politica/1529618951_552574.html
(4) Modernidad y capitalismo (15 Tesis). Bolívar Echeverría http://www.bolivare.unam.mx/ensayos/Bolivar%20Echeverria-Modernidad%20y%20capitalismo-15%20tesis.pdf
(5) Sugiro a leitura do texto "Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global" de
Ramón Grosfoguel em https://journals.openedition.org/rccs/697
(6) O texto "Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências" de Boaventura de Sousa Santos me fez refletir sobre como a marca da ancestralidade é tida como sinônimo de atrasado, na dicotomia com o avançado. A ideia do pré-moderno/tradicional/subdesenvolvido a ser superado pelo moderno/globalizado/desenvolvido (p. 247). Em https://journals.openedition.org/rccs/1285

 

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