Algumas reflexões sobre estudos decoloniais e audiovisuais

Marinilde Tadeu Karat

Confesso que tive uma grande resistência em fazer essa disciplina e que não conseguia perceber qualquer aproximação dos estudos decoloniais com a pesquisa que estou fazendo no doutorado. Quando me inscrevi na disciplina tinha lido uns dois ou três artigos que a minha orientadora recomendou e participado de uma disciplina de 3 dias durante um evento do programa de pós-graduação. Durante a disciplina tive a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre essa literatura e através das leituras e discussões realizadas com professores e colegas, pude perceber a importância de conhecer esse referencial e entender que mesmo que ele não seja um dos referenciais teóricos da minha tese, é um referencial importante para minha formação como pesquisadora na área de educação científica e tecnológica. 
O objetivo geral da minha pesquisa é compreender os sentidos sobre ciência e tecnologia produzidos por professores a partir de vídeos educativos nos canais de vídeo do YouTube, com foco em temas controversos de ciências e suas implicações no ensino. Pensando nas condições de produção mais amplas da criação da plataforma YouTubeEdu, que é um repositório de canais de vídeos didáticos, tentei fazer algumas aproximações com os conceitos da colonialidade do poder, do saber e do ser propostos por Maldonado-Torres (2008). Apresento aqui algumas poucas reflexões que fiz na tentativa de aproximar os estudos decoloniais com a minha pesquisa com audiovisuais. 
Em 2018, durante a reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, um grupo de pesquisadores escreveu a Carta de Salvador , com várias reflexões e propostas para uma Agenda da Democratização das Comunicações no Brasil. Esses pesquisadores colocam a questão de como a internet, a partir de grandes corporações como a Alphabet/Google, Amazon, Facebook e Apple (GAFA), inventou formas de lucrar através dos dados pessoais de milhões de usuários, “através dos algoritmos, fabricam-se cálculos, estruturam-se instruções, desenham-se caminhos de pensamento que nos vão construindo: em vez de tais empresas nos servirem, elas se servem sobretudo de nós” (CARTA, 2018). Temos uma falsa sensação de liberdade de navegação na internet, mas os algoritmos direcionam as nossas escolhas e os meios de comunicação de massa muitas vezes manipulam a opinião pública. Isso tudo é preocupante pois sabemos que os valores e as opiniões de boa parte das pessoas são formados através das leituras que elas fazem nos meios de comunicação, principalmente através da internet. A propagação de fake News e a formação de “bolhas” na internet tem influências na política, na educação e na ciência. É muito triste o fato de milhões de brasileiros não acreditarem na ciência e não valorizarem o conhecimento produzido nas universidades públicas. Os autores da Carta de Salvador evidenciaram os “riscos para a democracia, decorrentes da dominação dos sistemas de comunicação por grandes conglomerados, movidos pelos seus interesses comerciais e objetivos de poder político”. Na educação tivemos uma forte influência de grandes grupos privados na construção da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e isso se estende para os espaços da internet como por exemplo as plataformas de vídeos educativos do YouTube, criada pelo Google Brasil em parceria com a Fundação Lemman e os seus numerosos braços como Instituto Ayrton Senna, Fundação Natura, entre outros. Essas empresas estão fazendo parcerias com escolas públicas de forma que “o privado assume a direção das políticas educativas e define a produção e apropriação do conhecimento”. (PERONI; CAETANO, 2015, p. 340). Um exemplo de como o privado ocupa o papel que seria do estado na política educacional é o chamado Movimento pela Base Nacional Comum, uma ONG que produz estudos e pesquisas e investiga casos de sucesso em vários países. De acordo com Peroni & Caetano (2015, p. 344), “[...] esse grupo é composto de grandes instituições privadas e têm-se articulado com instituições educacionais globais, visando promover mudanças na educação dos países, especialmente no currículo e avaliação e, consequentemente, na formação docente, entre outros. São mudanças baseadas nas reformas ocorridas nos Estados Unidos, Austrália, Chile e Reino Unido”. 
A Fundação Lemman tem como meta que os audiovisuais sejam a principal fonte de conteúdo para todos que tiverem acesso à internet. Para que os youtubers possam postar suas aulas na plataforma precisam passar por uma curadoria dessa fundação e depois passar por um treinamento, uma espécie de workshop dado pelo Google Brasil recebendo depois um certificado, o “Google Certified Teacher”. Quais os objetivos teriam o Google Brasil e a Fundação Lemman em implantar essa plataforma de vídeos no Brasil? 
No artigo Imagen, médios y telecolonialidad: hacia uma crítica decolonial de los estudios visuales Léon (2012), defende a tese que os dispositivos audiovisuais se tornaram atualmente uma rede de mediações, que configuram uma “telecolonialidade visual caracterizada por uma forma de colonização do imaginário e memória ligada à operação particular da imagem produzida e reproduzida mecanicamente”. Para esse autor as “tecnologias, discursos, práticas e assuntos associados a esses dispositivos precisam ser entendidos dentro da analítica da colonialidade do poder, do saber e do ser”. León (2012), “defende que na atualidade os dispositivos audiovisuais se converteram em uma rede de mediações que atualizam a colonialidade do ver em um momento caracterizado pelo capitalismo cognitivo, a era das comunicações”. 
A colonização do imaginário e da memória está presente também no cinema, por exemplo nos filmes hollywoodianos o “mundo é representado pelo que convencionamos a chamar de Norte”, onde determinada visão de mundo e determinados sujeitos se impõem sobre os modos de ser dos outros povos (JUNIOR, 2013, n. p.). Como nos ensina Freire (2005, p. 174-175), “quanto mais se acentua a invasão, alienando o ser da cultura e o ser dos invadidos, mais estes quererão parecer com aqueles: andar como aqueles, vestir à sua maneira, falar a seu modo”. 
O artigo de Penna (2014) traz como propostas para reverter a ‘colonização do ser’, devolvendo a palavra ao oprimido, de acordo com o pensamento de Freire e dentro da perspectiva pós-colonial “dar relevância ao discurso produzido nas ‘zonas de fronteira’, pelos grupos excluídos e oprimidos”. (PENNA, 2014, p. 197).

Referências 

CARTA de Salvador: Democratização da Comunicação. Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). GT Democratização da Comunicação. Manifestação pública da SBPC – Proposta de documento para a diretoria e Conselho da SBPC. 2018. Disponível em: < http://sbpcacervodigital.org.br/bitstream/20.500.11832/2868/1/Carta%20de%20Salvador%20Democratiza%c3%a7%c3%a3o-da-Comunica%c3%a7%c3%a3o.pdf>. Acesso em 15 jul. 2019.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 47ª. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

JUNIOR, D. R. Argumento #1 – Os coletivos de vídeo popular e a descolonização do imaginário: aportes para uma reflexão sobre as contribuições dos coletivos de vídeos populares para um processo de descolonialidade e de interculturalidade. Revista Universitária do Audiovisual, jun. 2013. Disponível em: < http://www.rua.ufscar.br/argumento-1/>. Acesso em 15 jul. 2019.

LEÓN, C. Imagen, médios y telecolonialidad: hacia uma crítica decolonial de los estudios visuales. Aisthesis n. 51, 2012. Disponível em: < https://mail.google.com/mail/u/0/?ogbl#inbox/KtbxLvHLsgCdZBCwHnplnnPbbrvkCRBpLB?projector=1&messagePartId=0.4>. Acesso em 15 jul. 2019.

MALDONADO-TORRES, N. A topologia do ser e a geopolítica do conhecimento. Modernidade, império e colonialidade. Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, mar. 2008.

PENNA, C. Paulo Freire no pensamento decolonial: um olhar pedagógico sobre a teoria pós-colonial e latino-americana. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, v. 8, n. 2, 2014. Disponível em: < file:///C:/Users/mtkar/OneDrive/Documentos/ESTUDOS%20DECOLONIAIS/16133-Texto%20do%20artigo-32897-1-10-20181119.pdf>. Acesso em 16 jul. 2019.

PERONI, V. M. V.; CAETANO, M. R. O público e o privado na educação: projetos em disputa? Revista Retratos da Escola Pública, v. 9, n. 17, 2015. Disponível em: < http://retratosdaescola.emnuvens.com.br/rde/article/viewFile/584/658>. Acesso em 15 jul. 2019.

Comentários

  1. Ah... Fiquei com um gostinho de quero mais. Muito bom saber que existem autores discutindo os audiovisuais sob a perspectiva dos estudos decoloniais. Muito da colonialidade do ser passa por essas mídias. O fato de não nos reconhecemos enquanto Sul (múltiplo mas ainda um único Sul) passa pela nossa busca incessante de sermos como o Norte, seja pelo o que ouvimos nas músicas, ou pelo que vemos nos filmes estadunidenses e europeus. No caso do Youtube em parceria com as empresas privadas que buscam o lucro no filão da educação, temos a face mais perversa da modernidade se concretizando via capitalismo. É uma discussão muito interessante! Torço pra que na sua tese você explore isso. De qualquer forma, já fiquei feliz de ver que você encontrou um link entre nossas discussões e seu tema de pesquisa.

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  2. Respostas
    1. Agradeço pelas ótimas leituras que tivemos no curso! Com certeza essas leituras irão enriquecer muito a minha pesquisa.
      Encontrei outros artigos muito interessantes sobre deconialidade e cinema africano e também cinema indígena! Postarei depois
      Abraços

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